a pausa na música e na vida: suas muitas qualidades

Marcelo S. Petraglia

Este texto se baseia na transcrição de duas lives realizadas nos dias 8 e 23 de junho 2020, em meio a pandemia do Covid-19, organizadas respectivamente pelo EcoSocial e pela Faculdade Rudolf Steiner – São Paulo – Brasil

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Na música, som e o silencio se intercalam e se interpenetram. Conforme a relação que estabelecem entre si, diversas qualidades e significados podem emergir. Observar esta dinâmica pode levar a descobertas interessantes sobre o significado dos silêncios e pausas também em nossas vidas. Como e quando acontecem? Que qualidades podem ter? Como nos relacionamos animicamente com elas e aproveitamos suas mensagens e oportunidades? Escutemos…

Boa noite a todas e todos. A ideia dessa nossa conversa é olhar para o elemento da “pausa”, ver como ela acontece no contexto musical e a partir daí fazer algumas considerações em relação ao momento que vivemos.

Para falar sobre música, acho importante começar mencionando que ouvir música é diferente de ouvir outros sons. Nossa escuta funciona de um modo bastante peculiar quando estamos diante de um fenômeno musical. Pode-se exemplificar isso da seguinte maneira: quando se escuta qualquer som, um ruido na casa, no carro, na rua, na natureza ou em qualquer outro lugar, a pergunta mais comum que surge em nós é: o que produziu esse som? Buscamos, em verdade, sempre a fonte sonora. É o som do vento, é o som do mar, o som da chuva, do rio, das folhas, dos animais, o barulho de uma máquina, de um objetos da casa, etc.. Seja lá o que for é sempre som “de” alguma coisa. No instante em que identificamos a fonte sonora e damos o seu nome, respondemos à esta pergunta, muitas vezes inquietante, que nos invade. Esta resposta é importante, pois nos orientamos no espaço pelo som das coisas, colhemos informações sobre o mundo por meio dos sons. Poder identificar os diversos sons faz parte do nosso instinto de sobrevivência. Um som pode significar comida, água, perigo, um chamado, etc. Neste sentido, compartilhamos com os animais esta dimensão da escuta.

Já a escuta musical é algo diferente. Intuitivamente não buscamos a fonte sonora, mas sim procuramos saber “que musica é esta?” Neste sentido nossa escuta não está buscando coisas, objetos ou algo externo para além dos tons, mas a identidade manifesta nas relações dos tons entre si e seu significado musical. Na essência temos apenas 12 tons (pense nas sete teclas brancas e cinco teclas pretas de um piano), que são replicados algumas oitavas acima e abaixo no âmbito da nossa escuta. São nas configurações e relações particulares destes tons que se percebe uma identidade musical, uma melodia, uma sequência de acordes e mesmo um padrão rítmico. Esta configuração recebe um nome, seja uma canção ou peça instrumental. Mesmo quando está sendo tocada por um instrumento diferente ou tocada um pouco mais rápida, um pouco mais lenta, mais aguda ou mais grave; se as relações proporcionais entre os tons e as durações dos mesmos forem mantidas, reconheceremos como sendo a mesma música (mesmo que nem saibamos de fato seu nome). Não se pode ignorar que as variações de instrumento (timbre), intensidade (forte ou piano), se ela está num registro agudo ou grave e mesmo o andamento (rápido ou lento), têm um impacto na percepção subjetiva do ouvinte; já que estes elementos são qualificadores importantes da experiência musical. Uma mesma melodia tocada num violino ou num trombone com certeza soa diferente e pode afetar a recepção do ouvinte. Mas, numa camada mais essencial, desde que mantida a proporcionalidade de suas relações tonais e rítmicas, nenhuma destas versões têm o poder de transformar esta música e uma outra musica, mudar sua identidade.

Na verdade isso se dá pelo fato de a experiência musical ter sua essência não propriamente na dimensão acústica, mas na relação que se estabelece entre os tons, uma relação que é dada pelo próprio conjunto dos tons e dos ritmos organizados em um sistema, o que não acontece com os demais sons do ambiente. Este sistema é algo vivo, gerador de um “campo de força” criado pelos próprios tons e para os próprios tons expressarem seu significado musical. Cada tom existe como um vetor neste campo, um impulso volitivo que “quer algo”: ele busca uma resolução ou gera uma expectativa, se afirma em si mesmo, cria um questionamento, abre uma nova possibilidade, manifesta equilíbrio ou desequilíbrio. Ao longo de uma música o conjunto das configurações tonais e rítmicas, geram um fluxo de eventos que passam de estado em estado, numa transformação constante. Pode-se observar, por exemplo como um acorde tenso se dissolve em outro ou segue numa intensificação da tensão; como último acorde de uma música pode resolver (ou não) de forma enfática a narrativa musical que vinha se desenvolvendo. Em paralelo, os vários momentos que vão acontecendo ao longo de uma peça, vão nos conduzindo subjetivamente a estados anímicos diversos. Pode-se chamar cada um destes momentos de “estados de força”, um estado emergente com uma característica peculiar, ativo na relação com os momentos que o antecedem e o sucedem; de modo geral e sistêmico, também com todos os demais momentos da peça em questão.

Pode acontecer que no meio de uma música, como também antes do seu início e após seu término, ocorra aquilo que chamamos de “silêncio”. Não se trata aqui de uma ausência de fenômenos acústicos, já que isso, em condições ambientais normais simplesmente não existe: ruídos de cadeiras, pessoas tossindo, zumbido de um ar condicionado e outros, fazem parte do ambiente acústico de qualquer sala de concerto. O silencio ao qual nos referimos aqui é a ausência das forças tonais e rítmicas num dado contexto musical. A pausa, neste sentido, não indica a ausência de um evento ou estímulo acústico, mas sim a ausência, pelo menos no âmbito exterior, das forças que atuam na música; a pausa acontece quando a dimensão acústica da música cessa e deixa de ser percebida no espaço – mas restam suas forças.

O que acontece, como veremos mais adiante, é que justamente aquilo que desaparece para ouvido como dado exterior, ecoa em nosso interior. A pausa na música leva então a uma inversão da direção da nossa atenção. Paramos de ouvir fora e começamos a ouvir dentro. Nota-se ademais, que a qualidade daquilo que surge em nosso interior está impregnado pelos estados de força da música que se manifestou até aquele momento; bem como pelo, por incrível que pareça, que se seguirá. O importante então quando se fala da pausa na música, é perceber e caracterizar a qualidade destes estados de força enquanto contraparte silenciosa da música; e como estes reverberam em nosso interior.

Para exemplificar este ponto de vista, vamos agora ouvir quatro pequenos trechos de peças musicais contendo pausas e tentar caracterizar suas qualidades. Recomendo que posteriormente se ouça as obras na integra a fim de que se possa experienciar a qualidade das pausas no seu contexto maior.

Começaremos pela “Abertura” da ópera “A flauta Mágica” de W. A. Mozart

Temos logo de início e depois novamente no meio da peça três grande acordes da orquestra entremeados por pausas.

Exemplo 1

W. A. Mozart – A flauta mágica – Abertura (trecho)

W. A. Mozart – A flauta mágica – Abertura

Como se pode observar, temos esses acordes justapostos à pausas. Tratando-se da abertura de uma ópera, pode-se logo perguntar: qual o significado desta alternância, som silencio, som, silêncio, som, silêncio, e a música que segue? Considerando os dois momentos onde se tem os blocos de acordes com suas pausas, vê-se que o que segue ao primeiro bloco tem um certo carácter de anunciação: pode-se falar em “expectativa”, “abertura de um portal”, que é gentilmente seguido por um movimento em tonalidade maior até a entrada do tema principal que é desenvolvido em forma de fuga. Já a segunda aparição vêm depois de uma clara cadência de conclusão. A música poderia terminar aí… mas não termina. Os acordes em si já não são tão brilhantes como os primeiros e o que segue diretamente é o tema principal, mas agora tratado em modo menor.

Como primeira constatação pode-se dizer que pausas servem para marcar momentos de transição. Elas trazem consigo a possibilidade e abertura para conduzir a situações bastante diversas, conectando ambientes por vezes polares. Não cabe aqui fazer uma análise minuciosa desta grandiosa obra de Mozart, nem mesmo tentar definir com precisão o significado destas pausas, mas vale considerar o seguinte: A “Flauta Mágica” tem como um de seus motivos centrais o tema do “silenciar”. O grande desafio do herói da história (Tamino) é, mesmo nos momentos mais difíceis, silenciar; para poder alcançar um estado de maior consciência e ter o direito de casar-se com a sua amada (Pamina). Deve aprender a respeitar um processo interior. Em outro momento (um tanto cômico), um outro personagem (Papageno), recebe um cadeado na boca. O símbolo não poderia ser mais explícito; está nos dizendo: “silencie e escute neste silêncio”. Estas são talvez algumas das questões que se poderia investigar neste obra.

Como segundo exemplo temos o início do Contraponto XI obra “A Arte da Fuga” de J. S. Bach.

Exemplo 2

J. S. Bach – A arte da fuga – Contraponto XI (trecho)

J. S. Bach – A arte da fuga – Contraponto XI

Aqui ouvimos pausas interrompendo o fluxo das melodias. Neste breve exemplo, dois acontecimento chamam a atenção:

1) as pausa em cada voz funcionam como uma especie de contração, ou um “freio” ao discurso – tom, tom, tom, pausa / tom, tom, tom, pausa / tom, tom, tom, pausa / pausa e a resolução da tensão acumulada por essas contrações num movimento descendente ao centro de equilíbrio tonal da peça. Vale notar que, apesar das pausas, percebemos claramente o arco da melodia como um todo. Aqui não a ruptura, mas continuidade do fluxo atravessando a pausa e conectando os vário segmentos do tema.

2) Um aspecto curioso é que à medida que cada um dos instrumentos apresenta o tema, e vai se entrelaçando aos demais, continuamos a ouvir as pausas mesmo que outros instrumentos estejam soando naquele exato momento. Ouvimos pausas, mas não há de fato silêncio.

Aqui fica claro que, na música, uma pausa não se caracteriza pelo silêncio acústico (ausência de som), mas sim como um espaço onde as forças tonais atuam para além do tom. Com isso vimos dois outros aspectos das pausas bastante distintos do exemplo anterior.

No próximo exemplo, o “Danúbio Azul” de Johann Strauss II (algo bem conhecido), ouviremos o evolver de uma valsa, que se torna cada vez mais intensa, até o momento em que o fluxo sonoro é interrompido com uma pausa geral da orquestra.

Exemplo 3

J. Strauss II – Danúbio Azul (trecho)

J. Strauss II – Danúbio Azul

Creio que seja bastante perceptível o quanto a intensificação que antecede a pausa contribui para seu estado se suspensão e expectativa. Mas, no meu entender, o mais significativo neste caso é dado pelo que vem depois dela. Ao contrário do exemplo de Mozart, aqui não há mudança de direção ou modo; o tema é retomado na sua forma inicial e “a vida segue…”, tudo recomeça, podendo evoluir novamente. Ouve-se algo conhecido, o que acaba dando à esta pausa, apesar da grande expectativa que produziu, a experiência de um alívio da tensão, uma respiração profunda para o retornar a um ambiente confortável.

Neste quarto e último exemplo extraído da peça “Tabula Rasa” (1977) do compositor estoniano Arvo Pärt, a pausa se dá na passagem entre as duas grandes seções da peça.

Exemplo 4

Arvo Pärt – Tabula Rasa (trecho)
Este texto se baseia na transcrição de duas lives realizadas nos dias 8 e 23 de junho 2020, em meio a pandemia do Covid-19, organizadas respectivamente pelo EcoSocial e pela Faculdade Rudolf Steiner – São Paulo – Brasil
Arvo Pärt – Tabula Rasa

Pode-se dizer que ouvimos aqui uma intensificação dramática, algo que quase chega a ser opressor. Então uma pausa, um vazio que perpetua o estado deixado pelos tons finais. O que segue, no entanto, é algo totalmente novo e em certa medida surpreendente. Parece que a somos levados a um outro plano. Gostaria de sugerir que esta pausa tem a característica de “pausa de transcendência”, ou seja, uma pausa, ou um silêncio, que precisa acontecer, quando algo demanda se conduzido a um outro estado de existência. Aqui ouvimos apenas o momento de transição mas, como dito anteriormente, no contexto da peça como um todo o significado desta pausa é fortemente aprofundado e ampliado.

Existem naturalmente muitos outros tipos de pausas, igualmente interessantes. Mas espero que o que até aqui foi ouvido e comentado, tenha sido suficiente para indicar como se pode experienciar uma pausa na música: como estado de força, estado anímico e principalmente como uma pergunta direcionada ao nosso interior.

Gostaria de propor ainda que, dentre outras, pausas podem ser vivenciadas como:

1) um convite a escuta interior (como no exemplo de Mozart)

2) uma interrupção, uma parada que freia um processo (como no exemplo de Bach);

3) uma suspensão, que cria uma expectativa (como no exemplo de J. Strauss);

4) uma restrição, que impede que algo aconteça (talvez o que estamos vivendo nesta pandemia seja algo deste tipo);

6) uma pausa de limiar, que se constitui em portal para que algo totalmente novo possa acontecer (como no nosso último exemplo);

7) momento de inversão em um processo cíclico, como na respiração, o instante em que termina a inspiração e inicia-se a expiração e igualmente no sentido inverso. Se notarmos bem sempre há entre estas duas direções uma pequena parada, uma espécie de ponto zero no movimento. Este momento é na verdade parte integrante e fundamental de todo processo orgânico, já que tudo que é vivo, vive em ciclos de forma pulsante;

8) um descanso (ou pausa de dissolução). Não ouvimos nenhum exemplo deste tipo, mas pode-se observá-la ao final de um processo, quando tudo chega a um repouso. Aqui naturalmente deve-se considerar a duração desta pausa. Se ela se perde no vazio (ou se simplesmente nada é retomado na sequência), ela deixa de ser uma pausa, passa a ser um novo estado ou alguma outra coisa. Portando a duração da pausa, se é ela é longa, curta ou interminável na ralação com seu contexto, é algo que afeta sua própria identidade e significado.

Pensando agora no momento atual e buscando relacioná-lo o que foi dito, creio que seja possível fazer algumas considerações, das quais a primeira decorre da pergunta: estamos numa pausa? Para muitas pessoas, pode-se dizer que sim. Elas tiveram que interromper o fluxo das coisas que vinham fazendo, que para elas era vital e importante, há um claro impedimento ou suspensão. Outras tiveram que se adaptar a maneiras e condições de vida muito anti naturais. Para algumas ainda poderíamos dizer “a música mudou”, mas não há pausa. Talvez tenha ficado até mais acelerada, densa e complexa. Vejo muitas pessoas trabalhando mais do que antes, mais envolvidas e até sobrecarregadas com questões profissionais e pessoais. Isso se mostra como algo bem distante do que pode-se entender como sendo uma pausa; a conexão com o mundo externo, com o mundo das coisas continua muito forte. E como foi sugerido, a pausa é o momento onde o aquilo que não é tangível materialmente se manifesta; onde igualmente tudo se volta para o interior (de si mesmo e das coisas). Com certeza, muitas máquinas pararam e, neste caso poderíamos caracterizar tal pausa (do ponto de vista das máquinas) como “paralisação” ou de “estagnação”, pois de fato há um vazio de força ou qualquer outra qualidade neste acontecimento. Percebe-se, portanto, que o momento combina diversos tipos de experiências, embora seja inegável que, de um ponto de vista funcional, a grande maioria das pessoas foi isolada numa certa situação (mais ou menos ativa) da qual é difícil se libertar. Vem à mente a lembrança de uma brincadeira de criança onde todos corriam livremente até que o pegador gritava “mandrake!”, e todos tinham que ficar parados, congelados na posição em que estavam. O pegador então podia dar até três passos para alcançar e tocar em alguém (que se tornaria o próximo pegador). Caso não conseguisse, dizia “mandrake licença” e todos voltavam a andar e correr. Tomando esta brincadeira como metáfora, pode-se perguntar: onde cada um parou nesta pandemia (se é que parou)? Como este evento mundial atingiu cada um de nós? Para alguns talvez seja de fato uma pausa e esta com sua qualidade específica. Para outras talvez não.

Cabe portanto agora uma pergunta e reflexão final: qual o significado que este momento tem e terá para cada um de nós? Lembrando do que foi dito anteriormente, no contexto de uma pausa, seu significado é dado pelo que veio antes, mas também pelo que vem depois. É certo que quando “a música voltar” irá ressignificar este momento. Neste sentido, como estamos nos preparando para este depois? Será que estou esperando algo como a pausa do “Danúbio Azul”? Que fortemente suspende a ação, mas depois tudo segue como se nada tivesse acontecido? Esta pausa conduzirá a algo como na peça de Arvo Pärt, onde o retorno da música traz algo totalmente inesperado? Fica então a possibilidade de cada um projetar este futuro; escutar neste futuro. Para que a sua pausa possa posP – A qualidade da pausa está relacionada com a qualidade da escuta, da música e da vida?teriormente ser percebida como algo bom. Que apesar do sofrimento que muitos estão sentindo, esta pausa tenha valido a pena. E isso irá depender não só do que vivia antes e da pausa em si, com todas as suas tensões, mas do que virá depois. Igualmente depen  derá de o quanto se aproveitou este “silêncio” para uma reestruturação interna que conduza a um estado mais positivo no futuro. Assim convido cada um a fazer uma reflexão sobre sua experiência pessoal neste momento, sugerindo como estímulo as seguintes perguntas:

  • Quanto e em que âmbito este momento está sendo uma pausa?
  • Com que qualidade ela se apresenta?
  • Como quero aproveitar este momento para que esta pausa se converta em algo significativamente positivo no futuro?

No mais, agradeço a atenção preciosa de todos, a oportunidade de compartilhar estes pensamentos que relacionam a música com a vida, visando, mesmo que de um modo tateante e um tanto especulativo, dar um passo na transformação de nossa consciência. Agradeço igualmente o apoio dos organizadores deste evento e desejo de coração que todos fiquem bem.

Anexo

Complementando este texto, seguem algumas das perguntas e respostas feitas nas referidas lives que, de forma mais ou menos direta, se conectam com o tema exposto.

Perguntas & Respostas

P – Poder-se-ia dizer que existe uma “eco estética” na música?

R – Confesso não tenho clareza sobre este conceito (eco estética), mas assumo que ele possa ser entendido em dois sentidos: 1) Pode-se falar em uma apreciação estética (apreciação imediata e sensível) do “eco”, da reverberação, das forças da música para além do dado acústico. Isso seria uma caraterística da pausa musical e portanto, sim, algo pertencente ao fenômeno da música como um todo. 2) Uma outra consideração parte do reconhecimento de que música é um fator ambiental. Musica vive no espaço a nossa volta e como todo fator ambiental, é passível de uma experiência estética. Também como todo fator ambiental, requer cuidado para preservar suas potencialidades. Relacio<em></em></em>nando isso com a questão da pausa, olhando para a questão das fronteiras entre o som e os silêncios na música, é interessante observar dois momentos fundamentais para a escuta: antes de se iniciar uma peça e o momento final quando a sonoridade da música cessa. Normalmente se espera que haja um certo silêncio emoldurando a peça musical. Porquê? Uma possível resposta seria: o silêncio inicial, se preenche de possibilidades, como um campo grávido de forças. Ele abre e sintoniza o ouvido para o mundo própri o da música; um mundo de forças tonais. Já momento logo após o final da peça, oferece a síntese da “biografia” tonal que acabamos de ouvir (seu “eco”), em seu estado puramente imaterial; de certo modo seu significado essencial, que engloba todos os momentos vividos no decorrer da escuta da obra. Bons regentes, têm a habilidade de reger o público, sabem como cultivar e sustentar estes dois momentos. Dão assim a eles um caráter de pausa, ativando e preservando as forças musicais inaudíveis do ponto de vista acústico. Neste sentido, uma ação “ecológica” cuidando do todo do sistema em suas diversas dimensões.

P – Como se denominam as forças presentes na música?

R – Podemos chamá-las de “qualidades dinâmicas dos tons”, bem como “qualidades dinâmicas dos ritmos e da métrica” (ver ZUCKERKANDL, 1976, p 97-139; ZUCKERKANDL, 1973, p 151-200). Quando falamos de forças, queremos indicar uma vontade nos tons, tons que querem algo, que têm uma certa incompletude e por isso almejam mover-se em direção a um estado de maior equilíbrio. O exemplo mais clássico é quando se ouve a escala diatônica ascendente, sem, no entanto, alcançar a 8va do tom inicial:

Vivencia-se aí claramente a forte expectativa e a incompletude da situação que aguarda o tom final. Incontáveis exemplos, evolvendo outros gestos melódicos ou relações de acordes poderiam ser apresentados; o que nos levaria a perceber como os tons configuram um “campo de vontades”, impulsionando o movimento musical ou mesmo indicando o desejo de ficar em si mesmo. Importante notar que se trata de uma qualidade “dinâmica” móvel, pois não é uma qualidade de um tom específico (do Ré, do Sol, do Si bemol, etc.), mas é uma qualidade que se manifesta no tom num dado contexto musical. Assim, por exemplo, um Lá pode ter uma qualidade de centro de equilíbrio num dado momento de uma passagem melódica e ter outra qualidade (desequilíbrio) em outro momento. Às vezes a simples mudança dos tons que antecedem, sucedem ou soam simultâneos a este tom, podem levar a uma alteração na sua qualidade dinâmica. O mesmo ocorre em relação aos ritmos e estruturas métricas (compassos). Cada um dos tempos e contratempos de um compasso têm sua qualidade de força característica e vai tingir com ela os tons que recebe. A escuta musical, em última análise, é uma escuta de forças.

P – Pode comentar mais sobre a diferença entre a pausa e o silêncio?

R – Apesar de uma aparente sobreposição conceitual, pausa e silêncio têm características diferentes. Pausa na música não necessariamente corresponde ao silêncio do ponto de vista acústico. Sabe-se que, silêncio absoluto, do ponto de vista acústico, é algo inexistente para quem tem um ouvido mais ou menos saudável. Mesmo em uma câmara anecoica1 continua-se ouvindo algo. O que se considera “silêncio”, é em geral um nível baixo de ruido ou informação acústica ambiental de qualquer tipo. No caso da música, por exemplo numa apresentação ao ar livre, apesar dos sons ambientes, a música faz pausas; tão verdadeiras enquanto pausas musicais quanto quaisquer outras ouvidas numa sala de concerto. O que faz um pausa na música é a reverberação das forças ritmico-tonais para além do som, ouvidas num outro plano da escuta. Fica aqui claro que a música e o ambiente acústico pertencem a diferentes ordens da existência. Um outro ponto a considerar é que pausas são eventos momentâneos, inseridos num contexto, e ganham seu significado a partir da relação que estabelecem com este contexto. Já o silêncio pode ser um atributo mais permanente de um lugar: um deserto, o alto de uma montanha (sem vento), um templo, são normalmente lugares de silêncio.

1Câmaras com isolamento acústico e eletromagnético máximo.

P – O vazio seria também uma pausa?

R – Ao observar uma pintura tradicional chinesa, como por exemplo, de uma paisagem enevoada, representada com algumas manchas e traços, onde uma parte considerável da folha fica em branco, podemos ser tentados a chamar este espaço não pintado de “vazio”. Mas curiosamente, para o observador, este espaço em branco da folha, em diálogo com os traços e manchas, é tudo menos vazio. Sim, há um vazio de tinta, mas ele é potente enquanto força e significado. Ele foi potencializado por aqueles poucos traços e acaba expressando algo tanto ou mais significativo do que o que foi pintado com tinta. Assim pode-se pensar da mesma forma a relação da pausa na música; o silêncio acústico de uma pausa musical torna-se um evento de alto significado. Há sem dúvida casos em outros contextos da vida, onde se pode falar em um vazio ou ausência de significado. Mas isso, no meu entender, já não teria um caráter de pausa musical; seria uma outra coisa.

P – Assim como nos intervalos musicais, uma pausa pode ser considerada mais consonante ou dissonante?

R – Se quisermos fazer esse tipo de relação, sim, creio que é possível reconhecer uma determinada pausa como altamente tensa (dissonante). Já uma pausa pode ter a qualidade de algo tranquilo, ou “consonante” no sentido de que, nela, as tensões são resolvidas e chega-se a um estado concordância, mesmo que seja apenas um descaço.

P – Como se pode entender as pausas no motivo inicial da 5a sinfonia de Beethoven?

R – Para falar da qualidade destas pausas acho importante que se considere a interpretação especifica da obra. Há versões onde praticamente se atropela esta pausa, já outras onde ela é acentuadamente valorizada (e muitas outras variantes). Assumindo que o último estágio na criação de uma obra musical é sua interpretação – e no caso de peças orquestrais isso fica muito a cargo do regente – vai depender da leitura especifica que o regente faz da obra, o significado que cada pausa terá. Por isso vale escutar diferentes execuções. Para além destas variações, trata-se sem dúvida de uma pausa curta. Creio que se pode genericamente entendê-la pausa como uma “pausa de retenção”, pois ela interrompe o fluxo de uma mesma ideia, não há aqui uma mudança de estado após sua ocorrência.

P – Como sensibilizar as crianças para o significado das pausas?

R – Pensando em termos de educação musical, cada vez que cantamos ou tocamos algo com as crianças, há três momentos importantes que podem ser observados: antes de iniciar a música, as pausas que ocorrem eventualmente durante a peça e após seu término. Pode-se aproveitar estes momentos para cultivar uma atitude de escuta ativa para as forças musicais manifestas no silêncio. Estamos, por exemplo, diante do grupo de alunos e vamos iniciar uma canção. Damos o tom e segue-se um momento de silêncio. É neste momento que cada um se conecta com o fluxo daquilo que quer soar. Neste silêncio a escuta está direcionada ao futuro e se converte em guia da voz (a voz entregue a si mesma não sabe para onde ir). Respeitar e cultivar este momento de silêncio tornando-o um hábito, acredito que pode ajudar a desenvolver esta dimensão da escuta. Algo análogo pode acontecer ao término da canção, preservando o ecoar das forças no silêncio acústico que se estabelece. As pausas que ocorrem no decorrer da peça merecem igualmente este tipo de atenção. Tudo isso, em grande parte é conduzido pelo professor ou quem estiver conduzindo as crianças. Na medida em que esta vivência qualitativa das pausas for uma realidade para ele ou ela, as crianças intuitivamente, pela prática e imitação, tenderão a desenvolver esta capacidade.

P – A qualidade da pausa está relacionada com a qualidade da escuta, da música e da vida?

R – Entendo que a qualidade da escuta está muito relacionada à intensidade da atenção na escuta. A capacidade de dar a atenção devida à informação que chega por meio da audição. Isso se aplica à musica, com certeza, mas também à muitas outras situações: numa conversa, na escuta das próprias vozes e pensamentos, na escuta do ambiente… Para isso é preciso abrir um espaço e disponibilizar uma boa dose de energia para tornar-se sensível ao que vem ao nosso encontro. Qualidade da escuta estaria então dependente da capacidade de doar atenção a algo, formando com ela uma “tela” onde os fenômenos irão se imprimir. Se minha atenção é direcionada a algum outro evento na consciência (uma dor, uma imagem ou qualquer outra coisa), perco o foco do objeto primeiro, da música ou pessoa que está à minha frente. Se me permitem, quero dizer que estou cada vez mais convencido de que temos uma cota limitada de atenção para dar nesta vida. A atenção de dou a algo ou a alguém, não será dada a nenhum outro. Mesmo pessoas que fazem muitas coisas ao mesmo tempo, creio que o fazem porque conseguem mudar o foco muito rápido e não porque têm diferentes focos de atenção ao mesmo tempo. A atenção está a cada momento apenas em um lugar. Neste sentido ela seja talvez a coisa mais preciosa que temos.

P – Pausa é ação?

R – Sim! Mas é uma ação interna. O músico na pausa é extremamente ativo (pausa não é o descanso do músico). A pausa é plena de forças e, seja como ouvinte seja como executante, ao percebê-la nos engajamos nesta atividade. O público percebe a atividade do músico nas pausas da música. O bom músico tem a capacidade não só de conduzir os tons, mas também de conduzir e preencher os “silêncios” com sua atividade interior. A atividade é constaPoder-se-ia dizer que existe uma “eco estética” na música?nte, apenas que em um momento está fisicamente manifesta e audível, em outro momento está em outro plano, mas igualmente audível.

Gravações das lives

Disponíveis em:

EcoSocial – https://www.youtube.com/watch?v=kzz4vj-TgOY

Faculdade Rudolf Steiner – https://www.youtube.com/watch?v=5HQrMBFSaLI

Referências bibliográficas

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PETER, C. Zum Phänomen der pause und der wiederholung in der musik. Stuttgart: Bund der Frein Waldorfschulen, 1986.

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