por Marcelo S. Petraglia
publicado originalmente na revista Chão & Gente N. 1 Junho 1994
Ao longo das ultimas décadas, nas instituições de ensino e na mentalidade das pessoas em geral, desenvolveu-se a tendência, de levarmos as crianças e jovens, a assimilarem a maior quantidade de informações possível e o quanto antes, pensando que desta maneira estaríamos preparando realisticamente os futuros adultos. Passamos a dar mais ênfase ao aspecto quantitativo, negligenciando a tarefa formativa da educação.
Na verdade, em todo o mundo hoje, começa-se a perceber que esta maneira de agir esta levando a um empobrecimento das possibilidades do ser humano pois a informação de hoje pouco valor terá daqui a dez anos e o momento em que a alma humana estava aberta, maleável e passível de adquirir bases sólidas para a vida futura, passou. Em questão de educação, realmente vale o ditado: “malhar o ferro enquanto esta quente”.
Quando pensamos agora em uma real formação do indivíduo, queremos acima de tudo desenvolver suas potencialidades. Torná-lo apto a, no futuro, aprender tudo que quiser e precisar, ter a disposição infinitas formas de pensar, sensibilidade para perceber sua relação com os outros e o mundo e vontade de agir e transformar seu meio ambiente. Isto significa que a criança em fase escolar deveria ter a possibilidade de desenvolver as potencialidades de sua alma, sem contudo dar a seus processos uma forma cristalizada e definitiva. O que tentaremos mostrar a seguir é como, nesse sentido, as artes e em especial a música são uma ferramenta poderosa e indispensável.
A vida entre os tons
Crianças normalmente gostam de cantar, dançar ou pintar, isto faz parte da sua natureza. Elas intuitivamente sabem que estas atividades atuam intensamente no seu ser, ajudando-as a estruturar seu organismo. Podemos observar como, que por meio da música a criança da continuidade ao desenvolvimento de seu sistema motor, ao mesmo tempo que lança as bases para um pensar vivo e criativo, fazendo isso permeada por um sentimento de beleza e pertencimento.
Podemos entender este processo a partir de três atividades básicas: primeiro, a procura e desenvolvimento da afinação; segundo, a aquisição da vivência do pulso e do ritmo; e terceiro, aquilo que podemos chamar de “ouvir social”.
Afinar a voz (e o ouvido ) é buscar e incorporar as leis objetivas que ordenam os tons, deixando fluir essas leis ao organismo do canto. Todos nós somos capazes de perceber o “afinado” ou “desafinado” porque de alguma forma possuímos essas leis impressas no nosso organismo. Temos nas relações entre os tons algo que é culturalmente estável e que se apresenta a todos os indivíduos de forma objetiva. Temos aqui e também no elemento rítmico, um dos pontos de contato entre a música e a matemática, pois tons e intervalos musicais expressam suas leis através de números, mais precisamente por meio de proporções.
Uma melodia é basicamente uma ordenação desses tons no tempo, de forma fluida e com significado. Ao cantar uma canção, a criança incorpora essas leis e movimenta no seu íntimo, aquela força que é capaz de unir e ordenar tons, dando-lhes um sentido. Podemos observar aqui, uma atividade análoga ao processo que mais tarde lhe permitirá identificar, ordenar e utilizar conceitos corretos para formular um pensamento, só que na música ainda se mantém sob a forma pura de movimento. Cantar afinado é um processo que, desta forma, prepara um futuro pensar claro e sadio, sem contudo atulhar a criança com conceitos fixos.
Conquistando a si mesmo
Do outro lado temos o impulso do ritmo que, a princípio, é caótico e incontrolável. São aqueles impulsos inconscientes que nos impelem ao movimento, nos fazem dançar e atuam no nosso sistema metabólico, transformando substância em energia. Ao se exercitar na música, a criança tem a tarefa de dominar este impulso, dando-lhe forma, sentido e tomando as rédeas de sua vontade nas mãos.
Ritmo e pulso são aqueles elementos que nos colocam musicalmente em contato com o tempo e a terra. Batemos palmas e os pés no chão, vivenciando o fluxo musical através de nos. A criança trabalha no sentido de levar sua consciência até as extremidades dos seus membros, tomando assim posse do seu corpo. E quando lentamente fortalece seu cerne e adquire a segurança de um pulso próprio, é capaz de se antepor como indivíduo aos demais e ao mundo. Este é um passo fundamental no desenvolvimento da individualidade, que ao redor dos nove anos de idade começa a se consolidar e torna-se musicalmente audível. De grande ajuda para a criança nesse momento, podem ser os exercícios em que ela é solicitada a manter um pulso ou ritmo próprio contra os demais, pois isso significa abandonar a consciência de união com o meio ambiente e penetrar com mais confiança e profundidade na própria corporalidade. Neste gesto de independência encontramos o primeiro alicerce para um agir autodeterminado e livre no futuro.
Cantando juntos
Neste caminho de desenvolvimento, o elemento social torna-se o ponto central de todo o processo. A cada momento a criança vivência a alternância entre atuar e observar, cantar e ouvir. Aprender a ouvir o outro, a perceber a consonância ou dissonância do todo e encontrar a maneira adequada de com eles se relacionar; este é o grande aprendizado que ela pode fazer com a música. E, como já dissemos, a vivência que a ela toca de forma integral, não apenas apelando ao aspecto intelectual, é aquela que pode plasmar a alma incutindo-lhe sadias formas de atuação. Podemos dizer que: crianças que se exercitam, coletivamente, repetindo incontáveis vezes a mesma canção ou peça instrumental, com a intenção de aprimorá-la, estão praticando uma vontade social construtiva e buscando em conjunto, a harmonia do todo. Aprendendo, no contexto geral, a partir do seu íntimo, dar a sua contribuição, com prazer e alegria de crescer com os outros.