esboço para uma modelagem musical de processos sociais

Apresentação

Este estudo surgiu como uma tentativa de dar forma a uma ideia/pergunta que há muitos anos ronda minha mente: como tornar musicalmente audível, ou seja, sob forma de uma experiência estética1 imediata, os modos e qualidades das relações sociais? Dito de outro modo: se uma dada situação envolvendo duas ou mais pessoas fosse uma música, como seria esta música? A questão permite também uma formulação inversa: se uma determinada música fosse uma situação social, qual e como seria esta situação? Estas perguntas implicam portanto em algumas questões adicionais: pode a música ser um “símbolo audível” (para usar uma expressão zuckerkandeliana) de processos sociais? E se isso for possível, como demonstrá-lo?

A oportunidade para tratar o assunto surgiu da provocação feita por colegas do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte – LAPA, do Instituto de Psicologia da USP, sob a orientação do Prof. Arley Andriolo, na ocasião do preparo para o encontro do Grupo de Estética Social em 2022. A ideia era que cada um apresentasse algo que vinha estudando. Este foi o impulso que faltava para tentar dar concretude a este esboço de uma “Modelagem musical de processos sociais” e por isso fica aqui meu enorme agradecimento aos colegas que participaram deste evento.


Introdução

Como ponto de partida, creio que seja importante fazer alguns esclarecimentos e estabelecer algumas premissas para o que segue.

Esta proposta de estudo situa-se dentro daquilo que poderíamos chamar de ”transposição de meios”, ou seja, quando se usa um certo meio para criar uma imagem que analogamente representa um fenômeno que ocorre em um outro campo, meio ou contexto. Pode-se falar de um “paralelismo fenomenal” ou “transposição estética”, uma vez que parte do conteúdo percebido do fenômeno primário é simbolizada em um outro meio, que por sua vez nos oferece uma experiência estética condizente com sua natureza própria e busca transmitir os dados selecionados da experiência primária. Isso ocorre, por exemplo, quando utilizamos cores em mapas para representar altitudes, temperaturas ou índices pluviométricos (Figura 1), com o intuito de registrar, classificar e permitir uma leitura comparativa de fenômenos naturais.

Fig. 1 – Índice pluviométrico representado por cores.

Um outro exemplo, de caráter mais abstrato, são as linhas gráficas que utilizamos para representar diversos tipos de ondas de pressão acústica ou polarização eletromagnética (Figura 2).

Fig. 2 – Amplitude e frequência de ondas representadas como linhas num gráfico.


Dando um passo em direção a algo mais próximo do contexto deste estudo, vemos que existe também um procedimento conhecido como “Sonorização de Dados”. Neste caso o meio utilizado para representar os dados escolhidos do fenômeno primário são ondas acústicas que podem ser percebidas como sons, sequências de sons, em diversas intensidades, frequências e timbres. Nesta abordagem deve-se respeitar certos parâmetros para que a transposição seja efetivamente audível pelo ouvido humano, tais como amplitude e faixa de frequências. Entram também aqui em jogo, escolhas, em boa medida arbitrárias, sobre as regras de conversão que se utilizará para realizar a transposição. Como se notará pelos exemplos abaixo (Áudios 1a, 1b, 2 e 3), para realizar o procedimento o pesquisador tem ao seu dispor uma grade paleta de frequências, durações, intensidades e timbres, estruturas tonais, rítmicas e mesmo harmônicas as mais diversas. Neste sentido é sempre importante lembrar que o que é dado nestes casos à percepção (e também quando se utilizam cores, formas ou qualquer outro meio de transposição), é uma imagem simbólica (visual, tátil ou sonora), que foi, apesar de todas as analogias possíveis, construída segundo regras estabelecidas pela conveniência e proposito de quem desenhou o procedimento. Portanto, seria equivocado tomar estas representações como “a coisa” ou a única imagem possível de representar a coisa, pois são apenas uma das muitas possibilidades de transposição funcional e parcial do fenômeno.


Áudio 1a – Dados astrofísicos: Vela Pulsar PSR B0833-45
Michael Kramer – University of Manchester. 
Disponível em http://www.dd1us.de/spacesounds%206.html


Áudio 1b – Dados astrofísicos: Buraco Negro Perseus
Nasa . Disponível em https://soundcloud.com/nasa/black-hole-sonification-perseus



Áudio 2 – Dados sísmicos: monte Etna
Vicinanza, D. Et al. Data Sonification of Volcano Seismograms and Sound/Timbre Reconstruction of Ancient Musical Instruments with Grid Infrastructures. Procedia Computer Science 1 (2012) 397–406.


Áudio 3 – Dados moleculares: Alfa amilase Q9ZP
PETRAGLIA, M. S. Estudos sobre a ação de vibrações acústicas e música em organismos vegetais. Dissertação de mestrado do programa de Pós Graduação em Biologia geral e Aplicada do Instituto de Biociências da UNESP – Botucatu, SP, 2008.

Deve-se reconhecer também que todas estas transposições agem como um “filtro” e extraem do fenômeno primário certos aspectos, notadamente aqueles que se quer destacar e tomar consciência de forma mais nítida visando a obtenção de alguma informação específica. O procedimento é assim redutivo, todavia, revela aspectos que talvez de outro modo não teríamos como reconhecer e possivelmente operar com eles.


Considerando agora os elementos e procedimentos para abordar à música e os processos sociais, cabem ainda algumas considerações adicionais.

O conceito de música aqui adotado é o de uma criação humana que opera com tons e estruturas temporais, organizadas em sistemas, que permitem a vivência de forças; forças tonais e temporais assim como apresentadas na fenomenologia da música de Victor Zuckerkandl2. Reconhece-se a distinção fundamental entre o universo dos tons e estruturas métricas do tempo (entes sintéticos e puramente relacionais) e o vasto universo dos sons da natureza ou produzidos pelo ser humano e suas criações. Diferentemente dos tons (também criações humanas, mas sem referente no mundo exterior), sons em geral emergem como efeito de alguma coisa ou ser em movimento, passando a ser tacitamente um atributo de quem o produziu (som da água, do vento, das máquinas, dos animais e de todos os demais processos orgânicos e mecânicos que são percebidos pelo ouvido). Uma elucidação mais aprofundada desta distinção está naturalmente fora do escopo deste estudo e pode ser obtida mediante a leitura dos textos do autor supra citado.

Aqui cabe apresentar de forma sucinta e esquemática o paradigma musical-tonal que servirá de base para os experimentos que seguem.

De forma bastante consensual3 reconhecemos como base de nosso fazer musical um sistema composto de 12 tons que relacionam-se entre si das mais diversas maneiras. De forma esquemática temos dois modos básicos de representar este sistema, dispondo os tons numa sequência regular e equidistante: a ordenação por 5as (Figura 3) e a ordenação cromática (Figura 4).


Fig. 3 – Ordenação por 5as
Fig. 4 – Ordenação cromática

De modo mais concreto pode-se visualizar esta estrutura em sua versão linear cromática num teclado (Figura 5).

Fig. 5 – disposição habitual dos tons num piano, órgão ou qualquer outro instrumento de teclas.

Tendo como base este conjunto de tons e as qualidades resultantes de suas relações, a música se constitui com a criação de sequências tonais (melodias), bem como pelo encadeamento de configurações simultâneas de tons (acordes). De modo um tanto simplificado, pode-se dizer que a música cria significados por meio da ordenação particular em que os tons e conjuntos de tons se sucedem dando forma a um ente musical, uma composição. (Embora sejam igualmente de alta significância musical, as implicações rítmicas e temporais de modo geral não estão em questão neste estudo.)

Assim para empreender uma tentativa de modelagem musical de processos sociais tomaremos como meio de tranposição os estados qualitativos gerados pelas relações tonais visando um paralelo com certas questões das dinâmicas sociais. A premissa é que tanto em um âmbito quanto em outro, vivencia-se um jogo num campo de forças dinâmico; forças que podem ser identificadas como tensões e distensões, concordâncias e discordâncias, movimentos de aproximação e afastamento, atração e repulsa, consonâncias e dissonâncias, contração e expansão, expectativa e resolução, entre outras. Para quem está acostumado a operar no âmbito da música, a simples enumeração destas polaridades facilmente remete a um de seus elementos e o põe em destaque: a harmonia. Esta, junto com a melodia e o ritmo, tem sido a base do amplo fazer musical do ser humano. No caso específico da harmonia, vale considerar, que aqui o termo não se refere apenas às estruturas e encadeamentos de acordes, mas, em seu sentido mais amplo, pode ser entendida como “relacionamento dinâmico” entre os diversos elementos de um sistema. Neste sentido, o termo abarca, por assim dizer, toda a música, pois música é relação por excelência. Seja nas manifestações de tempos e contratempos, gestos melódicos que criam expectativa e satisfação de expectativa, movimentos intervalares ou a simples vivência das fases de um ciclo temporal (compasso), o que está em questão é sempre a relação entre as partes e a qualidade que esta relação faz emergir. Para que fique claro, por “qualidade” deve-se entender aqui vetores de força, movimento direcionado, graus de estabilidade ou instabilidade, intenção, expectativa, resolução. Deste modo a harmonia não é apenas o elemento “do meio”, quando se pensa no conjunto de “melodia, harmonia e ritmo” e suas possíveis sobreposições à constituição e atividades anímicas do ser humano, assim como é apresentada em certas abordagens4. Levada ao estremo esta concepção de harmonia musical, por abarcar os processos relacionais de forma arquetípica, desprovidos de conteúdo denotativo, apenas retendo sua forma e dimensão qualitativa, coloca-se como imagem da própria dinâmica da vida, e seu estudo uma ciência primordial dos processos orgânicos.

É sobre este conjunto de elementos e premissas que foram construídos dois exercícios que tentam, de algum modo, investigar na prática a viabilidade e efetividade das ideias aqui levantadas.


Exercício de modelagem musical de processos sociais I
(Qualidades relacionais entre campos tonais)

Questão: duas pessoas ou dois grupos interagem. Como soa sua interação dependendo do grau de alinhamento de seu repertório ou premissas? Por “repertório” pode-se entender simplesmente o entendimento mais ou menos comum que se tem das palavras utilizadas em um discurso, ou mesmo, em casos extremos a total compatibilidade ou total incompatibilidade de idioma ou linguagem. O mesmo vale para as premissas; o quanto elas são comuns?

Tomamos como material musical um pequeno hino natalino (Piae Cantiones – 1582 N. 13 – Ad cantus læticiae), composto de duas vozes que, salvo a finalização, compartilham a mesma melodia, apenas invertendo a primeira com a segunda parte entre si (a 2a parte da voz superior é a 1a parte da voz inferior e vice-versa). Ou seja, um material melódico bastante coeso.

Cada uma das vozes tem sua própria coerência e, quando cantada isoladamente, seja a partir de qualquer tom, comunicará seu significado com clareza indiscutível. Todavia, para que o conjunto das duas vozes, que devem soar simultaneamente, expresse o sentido que foi intencionado, ambas devem repousar sobre o mesmo conjunto de tons (no caso apenas 7 dos 12 tons disponíveis no sistema como um todo). Denominamos estes conjuntos de 7 tons de “campo tonal”5. Portanto, para que a peça alcance o sentido originalmente desejado, ambas as vozes devem utilizar o mesmo campo (utilizado aqui como representante dos significados das palavras e premissas). Mas, e se os campos utilizados por cada voz não for o mesmo? Ambas seguirão fazendo sentido isoladamente mas o resultado conjunto ficará distante do que se esperava; não apenas distante, mas também distorcido, repleto te tensões e incongruências.

Tendo como base nosso sistema de tons organizado em 5as, vemos aqui quatro possibilidade de interação, partindo de campos tonais mais divergentes (A) até a concordância total dos mesmos (D).

(áudios com ajuste de tessitura)

(Lá M <> Mib M)

(Ré M <> Sib M)

(Sol M <> Fá M)

(Dó M <> Dó M)

A expectativa é que a escuta destes quatro graus de interação possa fornecer uma experiência estética, portanto uma vivência puramente qualitativa, do que se passa em situações sociais análogas.

Para evitar qualquer mal entendido é importante mencionar que não se faz aqui um julgamento, no sentido de indicar uma situação como “certa” e outra como “errada” a priori. Deixando de lado a intenção original do compositor, que obviamente pressupunha um campo tonal único para ambas as peças, é bem possível que para alguns, as interações mais dissonantes despertem um especial interesse e que sintam a versão D (que se dá sobre o mesmo campo tonal), até como sendo, por assim dizer, um pouco sem sal. Mas cabe lembrar que o propósito do exercício não é o de produzir algo musicalmente mais ou menos estimulante, mas apenas espelhar os graus de entendimento e conciliação que ocorrem na interação das duas partes em face a distintas possibilidades de interação de campos tonais / linguagem e premissas.


Exercício de modelagem musical de processos sociais II
(Qualidades relacionais de acordes)

Neste segundo exercício, envolvendo as expectativas antagônicas de dois grupos em relação a um evento externo, a questão pode ser formulada da seguinte maneira:

Momento 1 – grupos A e B encontram-se numa situação antagônica e de expectativa em relação a algum evento futuro.

Momento 2 – ocorrido o evento, seu desfecho leva cada grupo a um estado distinto. Grupo A positivo, grupo B negativo. Simultaneamente os estados contrastantes manifestados por A e B em face do ocorrido, agem um sobre o outro produzindo um estado geral de alta tensão.

Momento 3 – a incompatibilidade de estados impõe um movimento de busca de equilíbrio do todo.

Momento 4 – cada grupo encontra um estado condizente à sua situação mas que simultaneamente (apesar de ainda conter dissonâncias) permite uma coexistência razoavelmente estável entre os grupos.

O quadro a seguir resume o processo:

Momento 1Momento 2Momento 3Momento 4
Grupo AExpectativa e tensão.Resolução positiva.Movimento em busca de um novo equilíbrio.Encontra-se o equilíbrio pleno e final.
InteraçãoExpectativa e tensão.Aumento da tensão.Diminuição da tensão e vislumbre de uma resolução unificada.Resolução possível aceitando dissonâncias.
Grupo BExpectativa e tensão.Resolução negativa.Movimento em busca de um novo equilíbrio.Resolução não totalmente satisfatória, mas ainda assim esperançosa.


Musicalmente, mediante a utilização de uma sequência de acordes, este processo poderia soar da seguinte maneira:
(Ouça as trilhas de cada grupo em separado e em seguida a trilha que integra ambos os caminhos.)

Grupo A

Grupo B

Grupo A + B

O esquema abaixo é uma tentativa de detalhar mais precisamente os processos tonais envolvidos neste exemplo. Cada círculo representa um estado-acorde particular e as setas entre os círculos os vetores de força que expressam o direcionamento dos tons no movimento de um acorde a outro; pelo menos até onde isso é possível de se demonstrar, a realidade é sem dúvida muito mais complexa.


Finalizando…

Contemplando o resultado destes dois exercícios, creio que algumas considerações sobre esta proposta podem ser feitas:

1) A experiência musical, especialmente no que toca seu aspecto harmônico, parece ser capaz de comunicar estados de ser, estabelecendo uma correspondência plausível com uma dada situação social e seu desenvolvimento. Pode levar assim a uma vivência estética imediata de um determinado fenômeno no âmbito das relações humanas.

2) Embora possa ser usada de modo especulativo, esta modelagem dificilmente tem o poder de prever situações futuras. Todavia pode ser uma ferramenta para a compreensão de eventos pós-facto (Post Rem).

3) Enquanto método de investigação, pode-se dizer que opera no campo das possibilidades interpretativas onde sempre mais interpretações/transposições podem existir lado a lado sendo igualmente válidas.

4) O grau de fidelidade que a transposição pode alcançar é altamente dependente da capacidade de observação do investigador e sua capacidade de operar com os elementos e procedimentos musicais; mais que tudo sua capacidade de escuta e criatividade objetiva.


Comentários, criticas e sugestões serão muito apreciadas e podem ser enviadas aqui.


Notas

  1. O termo Estética é usado aqui em seu sentido mais amplo de “aestesis”, que originalmente significa “percepção por meio dos sentidos”. ↩︎
  2. ZUCKERKANDL, V. Man the musician. Princeton: Princeton University Press, 1976.
    ZUCKERKANDL, V. Sound and symbol. Princeton: Princeton University Press, 1973. ↩︎
  3. Sem ignorar todas as demais possibilidades de organização tonal existentes no mundo, toma-se aqui como paradigma o que é mais comum em grande parte da humanidade e que, de modo até bastante inconsciente serve de referência tanto à pratica musical quanto à construção de instrumentos. ↩︎
  4. Ver as ideias de Rudolf Steiner e Edgar Willems a este respeito. ↩︎
  5. O conceito de “campo tonal” diz repeito a um conjunto de tons hierarquizados em torno a um dado tom que desempenha o papel de “centro de gravidade” do sistema. ↩︎

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